‘A gente nasce assim’: as lembranças de uma lésbica em Garuva

Thaisa Costa tem 30 anos, mora no Centro de Garuva, e faz parte de uma das famílias mais antigas do município de pouco mais de 18 mil habitantes. Para prestigiar as celebrações do Mês do Orgulho LGBTQIA+, a jovem fez um resgate ao seu passado para contar os desafios na busca pelo direito de viver sua orientação sexual.

Neta de ex-prefeito, Thaisa confunde sua vida com a própria história da cidade. Ainda na infância, a então menina observava que havia algo, não errado, mas diferente do habitual, que surgia aos poucos em sua vida em forma de elementos.

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Tradicionalmente, a menina que acaba de nascer ganha laço no cabelo, vestido, de preferência rosa; bonecas e quase tudo com babados. Mas, à medida que desenvolvia seus próprios gostos, Thaisa passou a rejeitar tudo isso.

“Eu nunca gostei de brincar de boneca, só de carrinho, de jogar bola. Até a roupa, a mãe só conseguiu me vestir de vestido até eu não entender. Depois, eu só queria usar camiseta e bermuda”, lembrou quando tinha sete anos.

Thaisa na infância, em um dos poucos momentos que permitia o uso de vestido. Foto: Acervo

Quando perguntado se sua afeição pelos elementos vistos pela tradição como  ‘de meninos’ era recorrente antes mesmo dessa idade, Thaisa foi categórica: “Na verdade, ninguém vira ‘sapatão’, né, que é o meu caso. A gente nasce assim”, brincou. 

A família entendeu que, de fato, a pequena Thaisa era uma menina com gostos diferentes, que preferia, mesmo, vestir bermuda e camisa; jogar bola e videogame, porém, o mundo da porta de casa para fora, dificilmente, em meados dos anos 90, teria a mesma compreensão. 

“Eu não gostava de nada das minhas amigas, eu me sentia diferente, tipo, que não fazia parte de mim. Aí eu odiava ir pra escola, a mãe me levava quase amarrada. Eu sempre quis ficar mais sozinha por isso”, afirmou.

Condicionada à solidão, Thaisa encontrou na programação de desenhos da TV a melhor companhia. Como toda criança, queria ser um personagem, mas não foi por uma princesa que a menina se identificou.   

“Na época, tinha esse desenho: O Fantástico Mundo de Bobby. Eu sonhava que era ele; fiz a mãe comprar um triciclo e tudo. Eu só lembro que eu queria ser o Bobby”, contou. 

Bobby, o personagem infantil que tornou-se referência de personalidade para a pequena Thaisa. Foto: Internet

Enquanto Thaisa crescia, desenvolvia em seu consciente que, de fato, era diferente das demais meninas de sua idade e sentia a pressão para se adequar ao padrão feminino enraizado na sociedade, o esperado de uma jovem de família da tradicional política garuvense. “Quando vai apresentar o namoradinho”, era o que mais ouvia, da família, dos amigos da família. Mas, enquanto sofria a força externa, a adolescência chegava e lhe inflamava a externar a Thaisa que só ela mesma conhecia. Um ‘cabo de guerra’ em sua cabeça.

Aos 13 anos, Thaisa estava no auge de sua adolescência. Na escola, sentiu-se acolhida pela ‘galera do fundão’ majoritariamente masculina, em destaque para seu primo André que era um bom combatente quando o assunto era levá-la à força para a escola. Neste período, as piadas sobre seu comportamento se intensificaram, principalmente, do público feminino da sala, com comentários dolorosos. 

Cada dia mais decepcionada com a rotina escolar, Thaisa envolvia-se em constantes brigas, principalmente, com meninas. Ela conta que sua mãe sempre soube pela metade os motivos dos desentendimentos, que eram sempre relacionados à discriminação por sua personalidade e forma de se vestir. Tinha medo de sofrer em casa o que já vivenciava em sala de aula. O último conflito na então escola onde estudava marcaria para sempre a vida da jovem como estudante: a sua expulsão definitiva. Em outro colégio, ‘onde me aceitaram’, frisou, Thaisa viu que o preconceito também estava presente. Haviam outras meninas, outros comentários, outras ofensas e piadas que machucavam. Menos de uma colega. Alguém que ela observava assim que chegou, fazendo uma verdadeira bagunça em seus pensamentos.

“Aí foi complicado, porque eu comecei a sentir, mesmo, que eu gostava de meninas. E aí começaram os conflitos dentro de mim”, revelou. Thaisa havia descoberto o primeiro amor. 

Tudo começou com uma amizade entre as duas, que logo se transformou em amor recíproco. “Ela sentia a mesma coisa, foi amor pra nós duas, assim, a gente se falava muito, se amava muito, mesmo, não estava nem aí pra ninguém: família, amigos. Queríamos ficar juntas, bem coisa de filme, assim”, lembrou. Da escola às ruas, das ruas às casas de ambas, que começaram a se visitar ‘como amigas’. Thaisa lembra que as famílias tinham uma longa amizade, então, a presença de uma na casa da outra não era estranha.  

O primeiro beijo que Thaisa deu em sua vida foi em um menino, na tentativa de despistar as suspeitas que pairavam sobre ela. Mas o resultado já era esperado: “Não senti nada”; com a primeira namorada, a sensação foi ‘mágica: “Frio na barriga; aquela sensação que todo mundo sente; tremia”, revelou. O namoro permaneceu em segredo, apenas contado à uma amiga em comum que ajudava nos encontros. 

Da infância à vida adulta, Thaisa enfrentou o preconceito para viver a plenitude de sua orientação sexual. Foto: Acervo

Como uma amiga já sabia, alguém especial também deveria saber, alguém que, segundo Thaisa, continuaria lhe dando as mesmas forças; uma aceitação que vinha do amor de primo: André. O dia esperado para a revelação havia chegado. Era final de ano e ambos estavam curtindo as férias na praia, em casas diferentes. O combinado era que os dois iriam sair para nadar, mas, no minuto que André foi ao encontro de Thaisa, na casa onde ela estava, a jovem havia saído brevemente.

 “Ele foi sem mim para a praia e se afogou. Eu guardo isso comigo até hoje. Ele ia todo dia me buscar pra ir pra escola, porque, senão, eu não ia; ele que me ajudou muito. Eu não consegui contar sobre mim, e  isso, até hoje, eu fico remoendo. Acho que ele desconfiava, mas a gente nunca chegou a conversar; ele me amava como eu era, tipo um irmão”, lamentou. 

Meses depois da morte do primo, outro episódio abalaria a vida da adolescente. As demonstrações de amor entre as duas namoradas eram expressadas, também, no antigo MSN, onde tinham total liberdade de serem elas mesmas. Sonhos eram ali compartilhados, construídos, desejados. Em uma noite, Thaisa deixou o computador ligado e foi para o banho. Ouviu mensagens chegando no computador, seguidas de gritos e o barulho dele sendo destruído. Sua mãe havia descoberto que aquela jovem que sempre visitava a casa não era apenas sua amiga. “E eu já comecei a chorar no banheiro”, contou.

Pela conversa que Thaisa teve com a mãe, naquela noite, soube que seria difícil para ela compreender a filha. O sentimento de ter sido enganada pelas duas jovens também se fazia presente, o que prejudicava ainda mais a situação. “Acho que, se eu tivesse contado pra ela, ia ser um pouco diferente”, sugeriu. Mesmo com a tensão difícil da noite, a jovem se sentia aliviada, por, agora, não esconder a si mesma de sua própria mãe. 

Mas o namoro estava com os dias contatos. O romance adolescente também foi descoberto pela família do outro computador, onde não houve aceitação. Proibidas de se visitarem, a relação ruiu aos poucos. “Não demorou muito pra gente terminar de vez”. 

A jovem transformava a proibição da chance de felicidade em rebeldia, que a contaminava em todos os pensamentos e ações. Já no ensino médio, em um outro colégio, a escola continuava desinteressante; as ofenças ainda eram retrucadas, formas agressivas de se defender, mas, de todas as vezes que foi humilhada pelos colegas por ser lésbica, um dia jamais esquecerá, pois, dessa vez, o preconceito não partiu dos alunos. 

“Algumas coisas, assim, eu deletei da memória, por essa questão de preconceito. Acho que deu trauma do passado. Mas eu lembro que eu estava na sala e ela (a professora) começou a discutir comigo. E eu não ficava quieta, enfrentava, mesmo. Aí ela falou que eu não prestava atenção na aula, que eu só aprontava, por causa desse meu ‘jeitinho’. Ela não falou com as palavras, porque sabia que podia levar processo, de certo. Mas nem precisava,  porque eu entendi o que ela quis dizer. Dos alunos, eu sempre resolvi, eu sempre soube me defender, mas, como eu disse, quando foi a professora, eu fiquei muito triste e decepcionada. Querendo ou não, o professor tem muita influência na vida. Querendo ou não, são eles que ajudam no nosso futuro”, comentou.

Por outro lado, no âmbito familiar, a jovem observava a mãe ser mais compreensiva com sua condição, após ela tornar-se amiga de um homem homossexual. Um apoio fundamental. “Ela disse que me amava acima de tudo e todos, que sempre ia me proteger do mundo aqui fora, que amava como eu sou. Era o que eu sempre esperei e desejava. Acho que todo mundo que é LGBTQIA+ espera isso. Ter o apoio da família”, afirmou. 

Thaisa com a mãe, que tornou-se uma grande aliada na luta contra o preconceito. Foto: Acervo

Dando seus passos na vida adulta, Thaisa sentia-se mais empoderada como uma mulher homossexual para enfrentar o preconceito, que tornava-se velado à medida que amadurecia. Neste período, descobriu que a discriminação com lésbicas mais masculinas, como no seu caso, é mais expressivo. “É bem complicado, por essa questão de ser ‘sapatão caminhoneira’, pela roupa de ‘machinho’. O que eu mais escutava em Garuva era isso: ‘Tudo bem ser lésbica, mas não precisa ser assim, tão machinho’”, comentou. Outra questão analisada por Thaisa é o estereótipo que algumas mulheres ‘héteros’ têm sobre as lésbicas, vendo-as, apenas, como um objeto de prazer sigiloso, um ‘fetiche’. 

Thaisa é casada há sete anos com a cantora Kethy Rios. Foto: Acervo

Atualmente casada com sua companheira há sete anos, e pensando em construir uma grande família por meio da adoção, Thaisa conta que tornou-se uma referência no município para jovens que estão descobrindo suas sexualidades, e que buscam conselhos de quem já percorreu uma longa jornada para viver de forma plena sua orientação sexual.

Texto: Herison Schorr

Jornalista formado pela Faculdade Bom Jesus Ielusc

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